domingo, 7 de novembro de 2010

Breve Comentário sobre Anticristo

Lars von Trier, em "Dançando no escuro", já havia feito uma crítica mordaz à sociedade estadunidense, sobrutudo ao seu sistema judiciário. Em "Anticristo" essa crítica se atualiza só que pela ótica da psicologia. O personagem principal - psicólogo cognitivista-comportamental - despreza a gravidade do "luto" (a meu ver, um surto psicótico com as fases descritas por Klaus Conrad, em "Esquizofrenia insipiente") vivenciado por sua mulher em função da morte do filho de ambos e pretende curá-la de sua "reação normal à perda". Interessante uma passagem do filme no qual o psicólogo despreza os sonhos de sua mulher-paciente-experimento, ao que ela afirma: "A psicologia moderna (eu acrescentaria: estadunidense) não se interessa por sonhos. Freud está morto!". Nem seria preciso dizer que o apego à psicologia superficialista e a recusa à escuta do que está para-além do dito só poderia acabar mal...

Vale ressaltar que esse filme gerou muita polêmica na ocasião de sua apresentação no festival de Cannes, tendo a crítica inclusive perguntado a Lars von Trier o motivo pelo qual ele o teria realizado, como se o mesmo fosse sem propósito em termos cinematográficos. Como afirma um dos seus comentadores, Érico Borgo, num tom psicocrítico demais para o meu gosto: Anticristo seria um "exorcismo terapêutico de uma depressão na qual se encontrava [o diretor] há dois anos, um teste auto-infligido de sua capacidade de dirigir novamente"; von Trier teria realizado um "torture-porn psicológico de arte", "como se 'O Albergue' tivesse um filho com 'A Professora de Piano'", cujo objetivo principal seria chocar o público.

Confesso que não fiquei chocado com essa película e se tivesse ficado, provavelmente não o teria escolhido para exibição; se o fiz, foi porque vi nesse filme a possibilidade de explorar o registro do pensamento, sobretudo no que tange à crueldade. Apesar da familiariedade humana com a crueldade, teria sido somente a partir de Freud - mais especificamente a partir de seu conceito de "pulsão de morte" (cuja crueldade é somente uma de suas facetas), cunhado em "Além do princípio do prazer" e desenvolvida em outros textos -, que ela passou a ser objeto de análise filosófica propriamente dita... ao menos é essa a opinião de Jacques Derrida expressa em "Estados da Alma da Psicanálise"... nesse sentido, o referencial analítico teria permitido dizer o indizível, aquilo que escapava à racionalidade filosófica ocidental...

Depois de Freud, o homem perdeu de vez a suposta pureza e qualquer resquício de humanismo malogra ante às descobertas do pai da psicanálise, dentre as quais, a de que a crueldade é algo constitutivo de nosso psiquismo e, portanto, de nossa própria "humanidade"... aquilo que as análises teológicas e sócio-antropológicas projetavam no "outro" (em demônios e em estrangeiros), Freud referiu ao próprio homem: somos cruéis! ferida narcísica ainda hj não superada! Anticristo expõe essa ferida... Um filme antes cru do que cru-el...

2 comentários:

  1. Esse final do texto, gostei muito! Antes cru de que cru-el. Numa leitura apressada, fiquei pensando se essa frase não contraria o pensamento freudiano, no sentido de que ela aponta para uma condição anterior a da cicatriz narcísica, que inauguraria a crueldade para o exercício da condição humana. Mas não deve ser isso que o Rogério quis dizer. Daí melhor oferecer meu peixe.
    Quando Lars faz essa crítica a psicologia estadunidense, o que mais ele pode estar a dizer. “Freud morreu” e o cognitivo-comportamental está a matar a diferença na América? Diria o filme de uma morte e de um assassinato?
    Minha viagem: ante a prescrição de um oráculo-estelar, o menino Édipo imagina-se um Ícaro das trevas. Noite fria, resolve descumprir seu destino. Asas congeladas; vai ao chão. A bela e insaciável Jocasta não suporta a ausência do filho e por isso se entrega a uma condição de ausência de si. A psicofarmacologia de Delfos sustenta por um tempo a sua condição. Laio-psicólogo-pai-marido ignora a sua sina e qualquer sina. Não quer saber e para isso apreende a possibilidade de um mundo visceral, onde a respiração conduz os modos de decidir. Quem respira bem, decide bem.
    Diz isso a sua bela, mas já não-tão-sua Jocasta. Ela não acredita, mas as vezes finge acreditar nele. Esse fingimento subjaz a sua condição de ausência e ela aprende outros modos de fingir. O drama então se faz tragédia na tela e tudo aquilo no que se poderia acreditar, seja a prescrição divina, a interpretação pontuada, a marcação dos hábitos, a intensidade das paixões aprisionadas numa forma-indivíduo; tudo isso se encerra no encontro do pescoço da mulher com as mãos do homem. A respiração que deixa viver, faz morrer. Enfim o contemporâneo na tela de Lars reinventa outra sina e se entrega novamente as formações do absolutismo. Uma inversão da biopolítica pelo exercício do seu próprio saber.
    Acorda Kleber! Escuto. Ainda cochilando ouço o sussurro de um poeta e fecho aqui o texto com ele: “essa vida é uma viagem / pena eu estar aqui / só de passagem”. Abença Paulo Leminski!

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  2. Boa Kleber! A liberdade do poeta de fato é maior que a do filósofo, a ponto de Platão enxotar a poesia da Pólis... Não é à-toa que o modelo narrativo-literário de Freud seguia o de Ephraim Lessing, bem como o do último Lacan seguia o de James Joyce...

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