Trabalho aqui com a idéia de que não se consegue precisar o começo de um acontecimento. Mas que quando se se encontra nele, ele não há mais como ignorar. Essas duas possibilidades parecem habitar o que se vê e se escuta em O fim e o princípio, cinema de Eduardo Coutinho.
O filme é anunciado como um experimento onde a única convicção da equipe de filmagem é a indicação de um hotel no município de São José do Rio Peixe. Fora disso, no sertão central da Paraíba, tudo pode vir a ser cinema.
Daí, produzem pistas e encontram Rosa. E Rosa, líder comunitária local, foi como um pé de fulô para que o filme brotasse. Um filme, sem roteiro prévio, se mostrou como uma generosa genealogia do povo de Rosa, que vivia em pequenas propriedades de um lugar chamado Araças. Primeira questão: uma genealogia não é de algum modo um roteiro do vivido?
Os fotogramas correm na tela e Rosa desenha um mapa de seu povo: tios, madrinhas, tias, avós e a conversa vai e vem e a gente, melhor, eu, vou ficando com vontade de atravessar a tela, para estar em um desses dias que foram dias do povo de Rosa. Mágica do cinema?
Vontade de tomar uma pinga com a Mariquinha, de trocar idéias e dizeres com Leocádio, saber do sono de Vermelha e das histórias da parteira Maria Borges. Com Assis, desdobrar sua tese de que a vida é um parafuso e só quem destorce é Jesus. A religião atravessa todos os discursos de Araças.
Queria também sentar com Rita e Zequinha e vê, se assim como Coutinho, quase sem querer, provoca uma intriga nesse casal que vive há mais de 40 anos juntos sem desavença.
Com Vigário, o único do Araças a usar a tração animal na lida, saber desse casamento com Antônia. Se encontraram viúvos e desviuvaram-se até que a morte os separe. Ela, a única de Araças que se arruma para a câmera, mas não traz uma conversa mole. Diz como se deveria dizer, de um jeito do qual não se desconfia do dito.
Tem também as irmãs Lice e Lica, madrinha de Rosa. Há o poeta José e seu soneto As mulheres, que lhe rendeu um troféu que exibe com orgulho e dignidade. Coisa bonita de ver e ouvir. Há a tia Dora, que já bem velhinha diz do destemor de só ter casado uma vez. Viúva nova, criou as filhas na roça de todo sol. Seu Nato, o homem que acha água no sertão rachado de sol e que não perde oportunidade de declarar seu amor a mãe. Nenén Grande, que de cigarro na boca e pitando com gosto, diz que deixou de fumar. A bela figura de seu Zé de Souza, o surdo bom de conversa. Por fim ou por princípio, Chico Moisés, o enigmático descrente que se denuncia crente, mas que só acredita no que vê e pode pegar. Pela mediação de Rosa, Coutinho narra um Araças que apenas lhe pertence por que ali também, ele ergueu uma breve casa de taipa. Esse é o seu filme e quem quiser que conte outra.